Elisabeth Roudinesco ataca ‘inimigos da psicanálise’
Elisabeth Roudinesco é a mais famosa historiadora da psicanálise na França. Hoje, porém, essa psicanalista de 67 anos, com dezenas de livros publicados em 30 países, entre eles uma biografia de Lacan (de 1993) e dois volumes da “História da psicanálise na França”, está no fogo cruzado de uma guerra que a opõe aos detratores da psicanálise, de um lado, e à família de Lacan, de outro. Em entrevista ao GLOBO, Roudinesco defende Freud e Lacan, mas queixa-se que alguns psicanalistas levam os mestres ao pé da letra, como se a psicanálise fosse “uma seita”, ataca. Ela se diz chocada com a disputa na Justiça com a filha de Lacan, Judith Miller, a quem conhece desde os seis anos de idade. A mãe de Roudinesco, Jenny Aubry, especialista em psicanálise de crianças, era amiga de Lacan. Foi uma das pessoas, segundo Roudinesco, que ouviu Lacan falar sobre o sonho de ter um funeral católico, um dos motivos do conflito com Miller.
Na sociedade de hoje, apressada, individualista e pragmática, Lacan e Freud têm o mesmo lugar que antes?
ELISABETH ROUDINESCO: Têm o mesmo lugar na História e na memória. São parte do patrimônio cultural e universal. A grande constatação: eles não pertencem mais apenas aos psicanalistas. Hoje, 72 anos depois de sua morte, os textos de Freud são publicados livremente.
É excelente, porque escapa do sectarismo. Os psicanalistas têm o seu Freud, o seu Lacan. Mas não são mais os únicos a pensar a questão.
Lacan reintroduziu a filosofia alemã na doutrina psicanalítica. Em segundo lugar, ele abandonou o modelo biológico vindo de Darwin por um modelo linguístico. Para Lacan, a consciência é a linguagem. Isso é importante porque, sem negar a importância do evolucionismo e do materialismo de Darwin, Lacan mostra que a especificidade do ser humano é a palavra e a linguagem: ele não é autômato, nem animal. Em terceiro lugar, Lacan se inscreveu na linha de pensadores pessimistas, ao cultivar uma visão pessoal da pulsão humana depois da exterminação dos judeus [nos campos nazistas] e adotando a linha de Theodor Adorno. Por isso, neste meu livro (“Lacan, a despeito de tudo e de todos”) eu revejo os textos “Kant com Sade” e “Antígona”, que o marcam como um pensador da luz sombria.
Os detratores dizem a mesma coisa contra Freud, que é muito mais fácil de ler do que Lacan. É tão difícil ler Lacan quanto é ler Spinoza ou Hegel, porque é uma obra mais filosófica.
Quem disse isso foi Freud. Eu retomo o que ele disse, referindo-me aos que acham que as obras pertencem a eles. Não quero estes extremistas.
As terapias comportamentais são minoritárias no mundo. Hoje dominam as escolas de psicoterapias como a Gestalt (com abordagem humanis$), as psicoterapias relacionais, de grupo, psico-corporais. Existem em torno de 700, o risco é a proliferação. Mas ao contrário das psicoterapias, a terapia comportamental tem uma concepção do ser humano radicalmente oposta à psicanálise. O conflito é terrível. Consideram que o sujeito humano se reduz a seu comportamento. Para eles, não há alma nem psiquismo. Não há diferença entre um animal e um homem. Há um terceiro campo: o da neurociência. E outro problema: a psiquiatria se tornou muito química. Vamos assistir a uma reviravolta. Depois de 30 anos, começamos a observar que os medicamentos psicotrópicos têm um efeito devastador no cérebro quando tomados por muitos anos.
E há ainda outro problema: frequentemente psicanalistas fazem uma defesa muito incondicional da psicanálise. Foi isso que Freud quis dizer, quando afirmou que os psicanalistas eram o principal inimigo da psicanálise: quando são muito sectários. No plano terapêutico, acho absolutamente condenável as sessões ultracurtas feitas por certos lacanianos. E eu digo isso no meu livro: não se deve imitar Lacan! Ele foi genial, mas hoje há muitos lacanianos que têm tendência a imitá-lo, a copiá-lo, no lugar de pensar sua herança.
Sessões curtas eram um traço de Lacan. Qual o problema com elas?
Lacan não fez isso o tempo todo, apenas no final de sua vida. Lacan também não teorizou a ideia de que era preciso fazer sessões muito curtas, de 5 a 10 minutos. Para mim, esse é o funcionamento de uma seita: frustra (o paciente), é uma manipulação. As sessões devem demorar, no mínimo, 30 minutos.
Michel Onfray é uma figura popular, que criou uma universidade popular. Seu livro contém 650 erros. Ele é alguém que não sabe do que está falando e quis produzir voluntariamente um panfleto. É um detrator integrista, que quer inverter a imagem do ídolo, fazendo dele um demônio. O problema é que ele afirma coisas que são inexatas. Por exemplo: Freud não poderia $engravidado sua cunhada em 1923 porque ela tinha 58 anos. Freud não estava em Berlim com os nazistas em 1935 porque ele estava em Viena, na Áustria. As irmãs de Freud não foram deportadas para o campo de concentração de Auschwitz, mas sim para outros campos, como Theresienstadt e Maly Trostinec. E não encontraram Rudolf Hoss (comandante do campo de concentração de Auschwitz). Para amparar sua tese de que Freud é fascista, nazista etc, Onfray torceu a verdade histórica a um ponto caricatural.
Porque Onfray é uma figura popular na França. Quando escutei na mídia que Freud era fascista, nazista, eu disse: não podemos deixá-lo fazer isso, simplesmente porque o que ele diz não é verdade.
Jamais! Nunca processo. É um debate intelectual.
Desde 1905, a cada cinco anos há um livro contra Freud. Isso significa que ele trouxe algo de importante à história do pensamento. Caso contrário, não o atacariam.
Ah, de jeito nenhum! Primeiro, eles não são os herdeiros: eles têm o direito sobre a obra de Lacan — o que é diferente. O processo acontece no dia 16 de novembro e eu tornarei pública minha posição neste momento. Eu disse que Lacan manifestou o desejo de ter funerais católicos. Não há prova. Lacan foi muito marcado por ritos religiosos católicos romanos. Ele escreveu isso. E ele sempre sonhou — isso era um fantasma — com a Itália e funerais católicos. Ele disse isso diante de muitas pessoas, que eu cito na minha obra “História da psicanálise”, de 1993.
Este debate é sobre o direito de uma historiadora como eu interpretar as declarações ou fatos. Há algo para mim chocante num processo como esse: deixa subentendido que não se tem direito de escrever sobre Lacan quando não se faz parte da família. A obra não pertence à família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário